Parentalidade ao contrário

Quando falamos em parentalidade, falamos quase sempre nos nossos papéis enquanto pai ou mãe ou na nossa experiência enquanto filhos, mas fazêmo-lo recuando no tempo, isto é, quando éramos crianças, adolescentes ou jovens adultos. Este texto propõe uma outra perspetiva: refletir sobre o papel do filho na idade adulta.

As preocupações mais comuns com os pais na idade adulta

À medida que os anos passam, os filhos na idade adulta podem desenvolver uma maior compreensão dos desafios, escolhas e atitudes dos pais. Porém, a saúde dos pais torna-se frequentemente uma preocupação central, especialmente quando surgem sinais de envelhecimento e perda de autonomia. Assistimos, por vezes, a uma inversão de papéis que é acompanhada pela necessidade de assegurar aos pais um envelhecimento que seja bom, saudável, tranquilo, sereno e seguro, muitas vezes num contexto em que a sociedade oferece poucas alternativas de apoio.

Além disso, parece haver também uma preocupação com a qualidade da relação com os pais. Isto é, adultos entre os 40 e 55 anos com pais acima dos 65 anos podem assumir não só a responsabilidade por prestar um apoio mais físico, logístico, ao nível da saúde ou financeiro (os pais podem não ter capacidade financeira para lidar com as suas responsabilidades e contas médicas acrescidas, etc), como também parecem assumir um pouco mais o peso mental e emocional da relação com os pais (procurando resolver conflitos, criar uma aproximação que talvez não existiu antes, etc). 

Só que, frequentemente, os filhos adultos vivem isso como sendo uma obrigação porque “são os pais” e “é necessário cuidar deles”. Esse sentimento pode ser avassalador e levanta uma questão importante: de quem é a responsabilidade pela relação entre pais e filhos?

A responsabilidade pela relação entre pais e filhos

Embora os filhos possam contribuir para a qualidade da relação, a principal responsabilidade da relação parental é dos pais, independentemente da idade. No entanto, muitos filhos adultos vivem a relação como um peso grande porque assumem a total responsabilidade como sendo uma obrigação. A própria sociedade parece facilitar essa obrigatoriedade, sendo aqui importante lembrar que nem todas as dinâmicas familiares são saudáveis. Muitas são marcadas por padrões de trauma, mágoas intergeracionais ou dinâmicas tóxicas. 

Exemplo: Um filho que preferia manter-se afastado devido a um historial familiar complexo pode, ainda assim, sentir-se obrigado a cuidar dos pais em situações difíceis, especialmente se eles não tiverem mais ninguém.

Dito isto, mais do que discutir esta realidade complexa, este artigo propõe um foco diferente: honrar a relação com os pais. 

Honrar a relação com os pais

No ritmo acelerado do dia a dia, é comum os filhos na idade adulta olharem para os pais através de uma perspetiva prática — como um apoio na logística familiar, por exemplo, para ajudar com os netos. Dessa forma, é muitas vezes negligenciado a oportunidade de honrar a relação com os pais.

Enquanto pais, esses filhos na idade adulta tendem a priorizar as necessidades dos seus próprios filhos. E tal como os seus filhos representam uma estratégia para nutrirem as suas necessidades, também eles foram uma estratégia para os pais deles nutrirem necessidades. De alguma forma, parece haver um desequilíbrio natural: os filhos tendem a ser mais importantes para os pais do que os pais para os filhos.

A geração atual de pais tornou-se mais consciente das suas responsabilidades e, por isso, tende a colocar-se mais em causa e questionar-se: “Estou a ser um bom pai/boa mãe?”; “Será que estou a fazer o suficiente?”. Sabendo que não é igual para toda a gente, há mais pais a questionarem-se sobre a qualidade da relação que têm com os filhos e a aceitar que a relação depende sobretudo daquilo que se faz com os filhos e da forma como se relacionam com eles enquanto são crianças.

Esta autoconsciência é uma oportunidade para projetarem também uma reflexão sobre como será a relação com os filhos quando forem mais velhos. A forma como será a relação com os filhos quando for a vez deles de terem 70, 75 ou 80 anos vai continuar a depender, senão totalmente, pelo menos em parte, daquilo que continuam a trazer para a relação. 

Porém, enquanto filhos de idade adulta, e muitas vezes em relações menos conscientes, é comum receberem dos pais mais velhos uma espécie de cobrança: “Tens de cuidar de mim”, “Eu fiz tanto por ti, agora é a tua vez de retribuir” isto é: “tens de me dar atenção, vir ter comigo, falar comigo, manter uma relação próxima e mostrar agradecimento”. O ideal seria também os pais refletirem mais sobre a relação com os filhos e questionar-se: “O que é que eu estou a entregar à relação?”; “Como é que esta relação pode ser boa e saudável para que o meu filho goste de estar aqui?”

Desafios na relação entre pais e filhos adultos

Para muitos filhos adultos, estar com os pais pode ser emocionalmente desgastante. Comentários, julgamentos ou referências a memórias difíceis podem reativar feridas antigas, transformando os encontros em momentos de tensão. Isso faz com que muitos filhos evitem interações frequentes, não por falta de preocupação, mas pelo impacto emocional que estas interações acarretam: é preciso cuidar das queixas, dos julgamentos, das cobranças, etc. 

Assim, o que é despertado interiormente quando os filhos estão com os pais pode ser muitas vezes um grande obstáculo a quererem aproveitar os momentos com eles. É aqui que se torna essencial reconhecer que a responsabilidade por uma relação saudável não pode ser unilateral. Tanto os filhos como os pais têm partes a assumir. Recorrer a terapias familiares ou ao desenvolvimento pessoal pode ser uma forma de reconstruir relações, mas, para isso, é necessário que haja abertura – idealmente, por parte dos pais.

Como a generosidade (dos pais) e a curiosidade (dos filhos) podem fazer a diferença

A generosidade – dar sem esperar nada em troca – é uma atitude crucial em qualquer relação, especialmente na relação entre pais e filhos e principalmente dos pais para com os filhos. Infelizmente, muitos pais, em vez de expressarem de forma aberta e sem julgamentos as suas necessidades emocionais – conexão, ligação, reconhecimento, atenção – optam pela cobrança ou por posturas que alimentam a culpa nos filhos: “Eu fiz tanta coisa por ti, agora não me ligas nenhuma”; “Comprei este terreno para tu construíres uma casa e agora não queres.” 

A ideia de dar sem esperar nada em troca pode ser desafiante, mas é um passo essencial para construir relações mais saudáveis e livres de julgamentos. Demonstrar amor incondicional através de ações concretas no dia a dia e evitar cobranças prepara o terreno para um futuro de maior proximidade e qualidade na relação. O futuro será como será.

Dito isto, para os filhos de idade adulta, interagir com os pais mais velhos pode ser um exercício emocional exigente, especialmente em contextos de histórias familiares complexas. Ainda assim, este pode ser um processo muito interessante de desenvolvimento pessoal.

Enquanto filhos, é possível procurar melhorar a relação com os pais, sem cair na armadilha de assumir 100% da responsabilidade pela relação toda, isto é, assumindo apenas a sua parte da responsabilidade. Parte do truque é estar consciente disso, sem tentar querer influenciar ou mudar os pais, mas sim interagindo com eles com mente principiante, abertura e curiosidade. 

Aceitar que não são responsáveis pelas escolhas dos pais ou pelas suas consequências não impede de querer criar uma maior aproximação, mostrar compreensão, descobrir mais sobre a vida interna dos pais e sobre coisas que aconteceram. Ao fazer isso, estão de alguma forma a preencher lacunas que existem na história familiar, criando uma narrativa coerente à volta de questões relacionadas com os pais. Este processo não só promove uma maior regulação emocional na relação – em vez dos filhos se sentirem desregulados só por estarem com os pais, podem interagir dentro da sua janela de tolerância, com acesso a todos os seus recursos – como também pode alterar dinâmicas antigas através da corregulação. É uma responsabilidade que os filhos podem assumir, mas apenas na parte que é deles.

Resumindo, honrar a relação com os pais na idade adulta não significa assumir todas as responsabilidades. Trata-se, antes, de encontrar um equilíbrio entre cuidar da parte da relação que lhe diz respeito, manter uma atitude de curiosidade, e lembrar que a responsabilidade parental nunca deixa de ser, em grande parte, dos próprios pais.

Falamos muito em aproveitar os momentos com os nossos filhos. Acho que nos esquecemos muitas vezes de aproveitar os momentos com os nossos pais.”

Mikaela Övén

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