O privilégio da estabilidade emocional

Enquanto seres sociais, é essencial que todos nós possamos refletir, conversar e atuar sobre o tema dos privilégios. E neste artigo, vamos debruçarmo-nos sobre aquele que é talvez o maior dos privilégios.

O privilégio da estabilidade emocional

Crescer numa família emocionalmente estável, com uma história de vida que não implica traumas, grandes questões de vínculo ou uma série de aprendizagens que nos fazem chegar à idade adulta a sentirmo-nos incapazes, insuficientes e não merecedores de amor, esse é talvez o grande privilégio.

Crescer numa família emocionalmente estável diminui a probabilidade de lidar com as questões referidas anteriormente. No entanto, será difícil encontrar quem tenha crescido numa família “perfeita”, em que a estabilidade emocional é constante e totalmente consistente. O foco é uma estabilidade emocional suficiente e isso, em si, é um verdadeiro privilégio quando pensamos que nos pode proteger em relação a situações em que somos desprivilegiados. 

Exemplo:

  • Vir de uma classe social não privilegiada;
  • Ser de um género não privilegiado;
  • Ter uma orientação sexual que significa perda de certos privilégios.

Para quem não cresceu com estabilidade emocional, isso pode parecer uma má notícia, só que essa notícia não é definitiva e tem uma característica ligeiramente diferente dos outros privilégios. Por um lado, podemos fazer alguma coisa em relação a isso, isto é, podemos – na idade adulta e de uma forma consciente e deliberada e às vezes com ajuda – minorar os efeitos. Por outro lado, e ao contrário de outros desprivilégios (racial, económico, etc), é mais provável conseguirmos ajudar os nossos filhos nesse sentido e nos ajudar a nós a influenciar outros desprivilégios. 

Se podemos educar e relacionar-nos com os nossos filhos, por exemplo, de acordo com os valores da Parentalidade Consciente (Igual Valor, Autenticidade, Respeito pela Integridade e Responsabilidade Pessoal), isso de alguma forma cria cidadãos que têm esse privilégio e que se tornam ativistas por um mundo melhor. 

O que é viver numa família que oferece estabilidade emocional?

Isso não quer dizer viver numa família onde está sempre tudo bem e somos sempre felizes, até porque muitas das nossas vivências acontecem fora da família (na escola, com amigos, etc.). Nós precisamos de frustração, de conflitos, de todo o leque de emoções para realmente termos esse privilégio, porque viver esse privilégio significa que sabemos viver com a derrota, a dor, o sofrimento, etc. 

Viver numa família que oferece estabilidade emocional quer dizer que há um espaço:

  • para sermos quem somos;
  • para honestidade e autenticidade;
  • onde podemos manter a nossa dignidade;
  • onde há aceitação, sentimento de pertença e onde merecemos fazer parte.
  • que se traduz, sobretudo em momentos-chave, em: “Tu és suficiente tal como és”; “Tu és importante e podes contar comigo”.

Se quiséssemos que a criança não se sentisse suficiente ou amada, o que faríamos?

Provavelmente iríamos praticar jogos de amor condicional; dizer algo como: “tu não tens razão para te sentires assim”, “eu não mereço que tu te sintas assim”, fazendo com que a criança deixe de confiar nas suas emoções e se sinta inadequada. No fundo, iríamos fazer tudo aquilo que comunica que a criança tem de se comportar, estar e ser de uma certa forma para poder pertencer e que, de outra forma, é excluída.

Exemplo:

  • “Tu não tens idade para participares nesta conversa.”
  • “Não te metas nisto porque tu não percebes nada.”
  • “Estás a portar-te mal, sai da mesa.”

Contribuir para a estabilidade emocional

Todos nós, de alguma forma, temos momentos em que interagimos com os nossos filhos sem proporcionar estabilidade emocional. A diferença é perceber se é algo que acontece todos os dias e na maior parte das interações, sem oportunidade de reconexão a seguir, ou se é algo que acontece pontualmente e com momentos de reconexão a seguir.

Nós podemos ativamente contribuir para a estabilidade emocional dos nossos filhos, alunos e crianças com quem lidamos. Podemos ganhar consciência que não tivemos estabilidade emocional e criar um processo de cura. As aprendizagens que fizemos não foram da nossa responsabilidade porque éramos crianças e estávamos a aprender a lidar com as pessoas, com a vida e com o mundo. Se calhar criámos a aprendizagem que não podemos confiar nas outras pessoas, que os nossos sentimentos não têm valor, que não podemos expor aquilo que realmente queremos, que não nos podemos vulnerabilizar porque isso enfraquece, que as relações românticas incluem violência e agressividade verbal e às vezes física, etc.

Um grande privilégio (que podemos ter da nossa história de vida ou que pode ser conquistado através de terapia e desenvolvimento pessoal) será perceber que somos responsáveis pelas nossas emoções e que os outros não são responsáveis pelas nossas emoções. Perceber isso permite-nos exercer o nosso poder pessoal. 

Exemplo:

Sei quais são as minhas emoções em relação a uma determinada situação, consigo perceber o que desperta essas emoções e que necessidades estão por detrás, e tenho a possibilidade de escolher estratégias para me sentir diferente. Se achar que é só da responsabilidade do outro, as minhas escolhas ficam muito limitadas em relação às possíveis estratégias. Esse é o privilégio.  

A proposta é ganharmos consciência e orientarmos a nossa atenção numa direção diferente. Podemos ficar gratos por termos alguns privilégios e podemos reconhecer quando eles não estão presentes e ter isso como ponto de partida. Nesse processo, podemos praticar autocompaixão relativamente ao nosso processo e ponto de partida, assim como praticar compaixão em relação ao caminho dos outros. Quando fazemos a nossa parte de criar o nosso próprio privilégio, é um legado que passamos também aos nossos filhos, entregando-lhes um ambiente de estabilidade emocional