Punidos pela Recompensa
Muitas vezes, ao querermos incentivar determinados comportamentos, recorremos a estratégias como a atribuição de prémios ou recompensas. A intenção até pode ser positiva: motivar, valorizar, estimular. Mas será que, a longo prazo, isso tem o efeito desejado? Ou pode, na verdade, produzir o oposto?
Uma história para começar
No livro Punished by Rewards, o psicólogo norte-americano Alfie Kohn partilha uma história curiosa que ajuda a ilustrar este tema.
Um senhor vivia numa casa com um relvado à frente. Todos os dias, um grupo de miúdos passava por lá a insultá-lo: chamavam-lhe “gordo”, “careca”, etc. Incomodado, decidiu arranjar uma nova estratégia. Um dia, quando os miúdos estavam a fazer o habitual espetáculo, ele disse: “Quem vier amanhã fazer isto outra vez, recebe um dólar.” Os miúdos, entusiasmados, voltaram no dia seguinte em força, fizeram o mesmo… e receberam o dólar. No fim, o senhor disse: “Amanhã, quem vier, recebe 25 cêntimos.” Voltaram, mas já menos motivados. No dia seguinte, disse: “Agora só vos posso dar 1 cêntimo.” E os miúdos pensaram… e desistiram. Já não valia a pena.
Este exemplo simples mostra como um incentivo externo pode matar uma motivação que, até então, era intrínseca. E isto aplica-se a muitas outras áreas da vida: a escola, a parentalidade, os ambientes de trabalho.
O risco de trocar motivação por prémios
No mundo laboral, por exemplo, é comum usar recompensas para motivar colaboradores: prémios financeiros, dias de férias extra, formações, distinções como “funcionário do mês”. E, sim, no início até parece resultar — há um aumento de performance, mais empenho. Mas assim que o prémio é retirado ou perde o seu efeito novidade, a motivação também desaparece.
Além disso, muitas vezes as pessoas deixam de se focar no que é realmente importante — a tarefa em si, o propósito do trabalho — para se concentrarem apenas no prémio. A médio/longo prazo, a atenção desloca-se do que fazemos para o que recebemos. Isto desvirtua completamente a intenção inicial da recompensa. E, com o tempo, surgem até esquemas para alcançar o prémio com o mínimo de esforço real, o que compromete todo o processo.
Pior ainda: deixamos de arriscar ou de inovar, com medo de “falhar” e perder o prémio. Jogamos pelo seguro.
Quando o prémio substitui a intenção
Nós estamos constantemente a ser eficientes — procuramos, de forma mais ou menos consciente, maximizar o nosso bem-estar. Quando estamos a fazer algo como estudar, trabalhar ou cuidar, tendemos a escolher maneiras de o fazer que melhor satisfaçam as nossas necessidades no momento.
Agora, imaginemos este cenário: eu até gosto do trabalho que faço — dá-me satisfação, sentido, realização. Mas de repente alguém chega e diz-me que, se atingir certos resultados ou fizer as coisas de determinada forma, recebo um prémio em dinheiro. E se, naquele momento, dinheiro for algo importante para mim (pela segurança que traz, pelas possibilidades que abre), é natural que possa passar a colocar mais atenção no prémio do que na tarefa em si. A motivação transforma-se. Aquilo que era satisfatório por si só deixa de o ser, e foco-me cada vez mais na recompensa.
Parece tão óbvio… e no entanto esquecemo-nos disso vezes sem conta. Acabamos por formar pessoas que agem apenas em função da premiação — crianças, adolescentes e adultos que só fazem o que for “compensado”.
Mas qual era, afinal, a intenção original da recompensa?
Certamente, não era estimular a capacidade de ganhar prémios. O que queremos, na verdade, é incentivar o comportamento em si — o interesse, a responsabilidade, o esforço, a colaboração, a criatividade. Quando o foco passa a ser o prémio, perdemos tudo isso.
E com as crianças, o que acontece?
Desde cedo, os seres humanos trazem consigo uma curiosidade natural, uma vontade de explorar, de aprender. Quando começamos a usar sistemas de prémios e castigos para condicionar os comportamentos, começamos também a matar essa motivação intrínseca.
Em vez de aprender pelo prazer da aprendizagem, ou de ajudar em casa por sentir que faz parte da família, a criança passa a fazer certas coisas apenas porque vai “ganhar” algo. A pergunta deixa de ser: “O que posso aprender com isto?” e passa a ser: “O que ganho se fizer isto?”
O mesmo acontece com as notas na escola. A intenção original pode ser boa — avaliar a aprendizagem. Mas pode tornar-se uma obsessão. E muitos alunos só estudam para tirar boas notas, não para aprender. Passado o teste, esquecem o conteúdo. Em adulto, conseguimos ver isso com clareza: há matérias que gostámos, que ficaram connosco, e outras que estudámos apenas para passar — e que hoje nem sabemos do que tratavam.
Prémios e amor condicional
Na parentalidade, vemos também uma transição: talvez se usem menos castigos, mas os prémios tomaram o seu lugar. E há uma armadilha nisto, porque o prémio implica também a possibilidade de não haver prémio — e isso pode gerar ansiedade, pressão e até insegurança. De repente, a criança começa a associar o seu valor ou o amor dos pais ao seu comportamento.
Isto manifesta-se de forma subtil:
- “Se te portares bem, tens direito a isto.”
- “Se fizeres isto, a mãe vai gostar mais de ti.”
- Ou até o silêncio e a ausência como forma de punição.
O amor transforma-se em moeda de troca — uma ideia que, repetida em muitos contextos, pode abafar a alegria, a espontaneidade e a motivação genuína.
Motivar sem premiar — será possível?
A proposta não é eliminar completamente as recompensas — por vezes são úteis. Mas é essencial sermos conscientes na sua utilização. O mais importante é perguntar:
- Qual é a intenção por detrás deste prémio?
- Qual será o impacto desta recompensa a curto e longo prazo?
- Que comportamento quero realmente incentivar?
Celebrar, por exemplo, é diferente de premiar. Podemos oferecer algo — um livro, um jogo — não como moeda de troca, mas como reconhecimento genuíno, como partilha, como momento de conexão. O gesto pode ser semelhante, mas o significado é completamente diferente.
Há uma diferença essencial entre celebrar e recompensar:
- Celebrar: “Uau! Conseguiste finalizar este projeto tão importante para ti! Deves estar radiante. Vamos fazer algo juntos para comemorar?”
- Recompensar: “Se fizeres isto, recebes aquilo.”
Na celebração, o foco está na experiência. Na recompensa, o foco está na troca.
Três ingredientes para a motivação intrínseca
A teoria da autodeterminação sugere que para existir motivação intrínseca, há três necessidades humanas que devem estar presentes:
- Autonomia – sentir que temos escolha, que estamos no controlo;
- Pertença – sentir que fazemos parte de algo maior, que somos importantes para o grupo;
- Competência – sentir que somos capazes, que conseguimos.
Se pensarmos nestes três pilares — seja como pais, educadores, líderes — talvez não precisemos tanto de prémios. Precisamos é de criar ambientes seguros e significativos, onde estas três necessidades estejam presentes. E talvez, em vez de motivar a agir por medo de perder ou desejo de ganhar, possamos inspirar a agir por vontade própria, com gosto, com sentido.
Em resumo:
- Prémios podem funcionar a curto prazo, mas podem ter custos a longo prazo.
- A motivação extrínseca (por recompensa) tende a sufocar a motivação intrínseca (por interesse, significado, prazer).
- Sempre que quisermos motivar alguém (crianças ou adultos), vale a pena parar e refletir: O que estou mesmo a incentivar aqui? Estou a apoiar o crescimento da autonomia, da pertença e da competência? Ou estou apenas a oferecer um prémio, esperando que andem atrás dele?
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