“Ai tanta vergonha… o gato comeu-te a língua?”
de Laura Bettencourt
“Ai tanta vergonha… o gato comeu-te a língua?” – E outras coisas que podemos dizer às crianças
“Ai tanta vergonha… o gato comeu-te a língua?”. Estes são exemplos de algumas das expressões a que nos habituámos ouvir (e dizer) quando uma criança se esconde atrás da mãe ou do pai, olha para baixo, não cumprimenta, não sorri ou não responde às perguntas de um adulto desconhecido ou pouco familiar. Na verdade, também são muitos os pais que, confrontados com estas situações, dizem sentir vergonha ou sentirem-se pressionados a fazer algo para que a criança corresponda à expectativa do adulto.
Enquanto profissional de psicologia, deparo-me frequentemente com situações semelhantes no atendimento a famílias e, talvez seja enquanto mãe, que me causa um maior leque de emoções desde vergonha, zanga e compaixão. Se num primeiro momento a minha vontade é a de “socorrer” o meu filho, na verdade, observar-me e observá-lo (e quantas vezes se remete ao silêncio!), deu-me algumas pistas interessantes.
Não tenho qualquer dúvida de que quando o adulto se dirige à criança desta forma tem uma intenção claramente positiva e fará, possivelmente, o melhor que sabe. Talvez queira interagir com a criança ou apenas sentir aceitação por parte desta. Talvez se sinta um pouco responsável, enquanto adulto, por contribuir para a educação de todas as crianças, de uma forma geral. Podemos considerar também o impacto das questões culturais que por vezes nos afastam de uma leitura adequada das reações da criança (1), já que em algumas culturas, a emoção vergonha é considerada quase “um alvo a abater”. Ao contrário, a extroversão e a espontaneidade são muitas vezes elogiadas e desejadas. Por isso mesmo, alguns adultos quando assistem a sinais de vergonha da criança, tendem a dirigir-lhe mensagens críticas que, com grande probabilidade, aumentam os sentimentos de vergonha. Na tentativa de “soltar” a criança, a nossa comunicação pode mesmo surgir de forma paradoxal: “não tenhas vergonha…, tens de se ser espontâneo”, esquecendo-nos que a criança não sabe como pode “deixar de ter” aquilo que afinal “tem” e que, se a espontaneidade é algo que “devo ter”, já não é espontânea.
E do ponto de vista da criança, o que fará com que se esconda ou não cumprimente o adulto? Quando isso acontece, há uma grande possibilidade de que esta esteja apenas a responder com emoções como o medo ou a vergonha, perfeitamente ajustadas às suas necessidades de segurança, à sua idade e à exposição a contextos menos familiares. A este propósito, podemos relembrar um pouco sobre desenvolvimento infantil. De uma forma geral, a investigação diz-nos que reações de medo e mesmo de vergonha, principalmente na primeira infância, existem muitas vezes como uma resposta adequada de vinculação perante estranhos (ou pessoas percepcionadas pela criança como tal). Sendo assim, têm como função proteger os vínculos existentes (1), isto é, garantir a proximidade das pessoas significativas às quais está vinculada e com as quais se sente verdadeiramente segura. Assim, ao falarmos de instintos, é fácil perceber que, ainda que na realidade a situação não seja ameaçadora, a percepção da criança diz-lhe que, perante uma situação desconhecida o melhor é “jogar pelo seguro”.
Esta capacidade da criança em avaliar e detetar de forma instintiva potenciais ameaças – a neurocepção (2) – é a mesma que lhe permite defender-se de situações verdadeiramente perigosas. Como tão bem sabemos, sentir medo (seja durante a infância como na vida adulta) é um instinto natural que nos permite defender e ativar os “circuitos de sobrevivência” (3) perante situações de perigo. Sabe-se hoje que as primeiras reações ou sinais de desconforto perante um estranho são geralmente bem perceptíveis pelos 6, 7 meses de idade e se intensificam com a ausência da principal figura de vinculação (maior parte das vezes, a mãe), habitualmente evidente pelo choro ou mesmo gritos e também por sinais não visíveis a “olho nu” como a aceleração do batimento cardíaco. Ao longo do desenvolvimento, outros sinais tendem a surgir, como esconderem-se atrás dos pais, baixar o olhar, tensão muscular, franzir a testa, por vezes com a aparência de “cara zangada”. Se é certo que algumas crianças permitem mais facilmente a aproximação de pessoas pouco familiares, muitas outras se manifestam desta forma. Estas diferenças individuais podem apenas significar que estamos perante diferentes temperamentos e, portanto, distintas formas habituais de resposta perante os acontecimentos. Se é certo que a investigação nos mostra que algumas destas crianças possam manter ao longo do seu desenvolvimento maiores sinais de retraimento ou vergonha, não só tal não constitui necessariamente um problema como, maior parte das vezes, tais características tendem a desvanecer-se na idade adulta (4).
Na verdade, trata-se de diferentes reações emocionais que, à luz de muitas abordagens, tal como na Parentalidade Consciente, são vistas como possibilidades de resposta às necessidades da criança (neste caso de segurança) e que deverão ser respeitadas (5). Trata-se da criança querer comunicar algo como “não tenho a certeza de quem és; não sei se me podes fazer mal; estou confuso; não sei o que dizer, fazer, etc….”.
Posto isto, se continuar a ser importante para si interagir ou cuidar da criança que apresenta sinais de medo, vergonha ou desconforto na presença de um desconhecido, vejamos algumas possibilidades:
. Respeite e empatize com a reação da criança, aceitando-a como algo esperado naquele contexto. Os adultos, ao manterem a interação entre eles, sem pressionar a criança para que altere o seu estado ou comportamento, estarão a contribuir para que, a seu tempo, ela se ajuste à situação nova.
. Guie-se pelos sinais da criança que podem indicar-lhe que a criança já está mais disposta a interagir: o olhar, mostrar o corpo mais relaxado, sorrir (ainda que ligeiramente), falar alguma coisa, começar a brincar ou a alternar entre esconder-se e mostrar-se. Nesse momento, talvez o adulto possa avançar um pouco mais.
. Aja de forma simples e amável, tal como agiria com um adulto que acabasse de conhecer. Provavelmente não iria salientar o facto de se mostrar reservado, nem perguntar coisas como “é sempre assim tão envergonhado?” ou “porta-se sempre assim tão mal?”. Talvez possa aproximar-se respeitosamente da criança, baixando o corpo à sua altura e experimentar dizer algo amistoso, como uma breve apresentação ou algo que imagine ser do interesse da criança. E se não souber o que lhe dizer, está tudo bem! Talvez signifique que, tal como a criança, também se sente mais à vontade com pessoas que conhece melhor!
Se os sinais de retraimento da criança se mantiverem e esta optar por não o cumprimentar (ou mesmo fazer “cara feia”) pondere que está a comunicar-lhe algo como “preciso de te conhecer um pouco melhor para me sentir segura na tua presença” ou simplesmente “não estou preparada ou disposta a interagir contigo neste momento”. E relaxe, isso não significa que existe algo de errado consigo e muito menos com a criança!
Os pais também poderão ser facilitadores neste processo:
. Dê sinais de segurança, mostrando à criança (por palavras ou pela linguagem corporal) que o adulto é de confiança, pois isso potencia a percepção de segurança da criança (6). Na eventualidade do adulto desconhecido se tornar muito persistente, poderá validar a reação da sua criança, ao mesmo tempo que ajuda o adulto a compreender a situação, dizendo algo como: “está tudo bem, naturalmente o meu filho/a precisará de mais algum tempo para se sentir confortável na sua presença”.
. Aproveite para fortalecer a conexão: se pensarmos que qualquer acontecimento pode servir como forma de fortalecer a conexão e como fonte de aprendizagem, pode aproveitar para conversar com o seu filho sobre como se sentiram, o que pensaram e sobre possíveis formas de cada um comunicar as suas necessidades.
Em suma, o medo e a vergonha (ou até mesmo expressões de zanga) podem surgir enquanto repostas naturais de vinculação e neurocepção. À medida que a criança cresce e desenvolve relações saudáveis com as pessoas com as quais se sente vinculada, estará também a desenvolver condições para se sentir cada vez mais segura em contextos menos familiares. Ao crescer num ambiente de segurança e de respeito (pelas suas ideias, emoções, sentimentos, necessidades), a criança tornar-se-á cada vez mais capaz de descodificar apuradamente os sinais de perigo e mais livre para diversificar a forma como interage nas diversas situações.
- Neufeld, G. & Mate, G. (2013). Hold on to your kids: why parents need to matter more than peers. Vintage Canada Edition.
- Porges, S. W. (2004). Neuroception: a subconscious system for detecting threats and safety. Zero to Three, 24 (5), 19-24.
- LeDoux, J. (2012). Rethinking the emotional brain. Neuron, 73, 653-676.
- Kagan J, Reznick JS, Snidman N, Gibbons J, Johnson MO. Childhood derivatives of inhibition and lack of inhibition to the unfamiliar. Child Development. 1988 Dec; 59(6):1580-9.
- Övén, M. (2015). Educar com mindfulness. Porto Editora.
- Delahooke, M. (2017). Social and emotional development in early intervention. A skills guide for working with children. PESI Publishing & Media.