Avó Luz

de Inês Ferreira

Aos adultos que escolhem ser luz. Aos adultos que querem e sabem que podem, também, ser luz.

Antes de leres o que escrevi, agradeço-te por estares aqui. E aproveito para te convidar a embarcares comigo num breve exercício. Peço que te coloques numa posição confortável, uma posição em que os teus pés toquem o chão e tu sintas esse apoio e, caso te seja possível e te sintas bem, feches os olhos. Depois de teres os olhos fechados, convido-te a respirares fundo. Uma, outra e mais outra vez. Convido-te a sentir o ar a entrar e preencher em pleno os teus pulmões. Que possas sentir o quão energético, revigorante e poderoso pode ser este pequeno exercício. Agora, em conexão contigo mesma(o), peço-te que respondas de coração aberto a estas 3 perguntas.

Quem guardas dentro do teu coração? Quem conquistou esse lugar mágico e tão intimo? Quem foram, são, os adultos luz da tua vida?

Falo-te, hoje, de alguém que me iluminou e me ensinou sobre a minha luz. A minha avó.

A minha avó, uma das mulheres que mais influenciou a minha infância, vida e maternidade, não sabia ler nem escrever. Não sabia porque não teve oportunidade de frequentar uma escola. Não sabia porque aos 7 anos, 7 anos, em vez de estar na escola e a brincar, estava a trabalhar numa quinta. Curiosamente uma das tarefas, entre outras, era precisamente cuidar das crianças da quinta. Por esta e tantas outras razões a minha avó, não teve direito à sua infância. A ser criança. Não teve grandes oportunidades de poder brincar, ser mimada, e usufruir da ingenuidade típica de uma das fases mais belas e importantes da vida. Cresceu rápido, por força das circunstâncias. Pela necessidade de sobreviver e de ajudar a sua mãe, os seus irmãos. Cresceu mulher (sem ser menina), casou, foi mãe e a vida continuou a dar-lhe muitos desafios e imensas privações.

Foi esta mesma mulher que nunca foi à escola, que não concluiu nenhum curso académico, que não leu livros, artigos ou viajou. Que viveu uma vida humilde e com poucos ou nenhuns confortos materiais. Foi ela que me ensinou sobre o mais nobre dos sentimentos, o AMOR. Foi com ela que mais me aprendi sobre o amor que não cobra, que não espera nada em troca. Sobre relações saudáveis. Sobre honestidade. Sobre integridade. Sobre congruência. Sobre vínculo. Sobre a vida real. Foi ela que me ensinou que a educação vem de dentro. Foi ela que me demonstrou, ao longo de tantos anos, que a parentalidade pode ser feita em consciência e de forma consciente, aliando as emoções à razão.

Foi, ela, a mulher-menina-avó que me ensinou através do seu exemplo, no seu dia-a-dia, sobre aceitação, sobre generosidade. Sobre o poder do perdão, sobre compaixão e empatia, sobre o amor sem condições, sem MAS.

A minha avó que teve uma vida dedicada a cuidar dos outros, e às vezes tão pouco de si, nunca me bateu, castigou, manipulou, desrespeitou ou diminuiu para me educar. Pelo contrário, fazia-me sentir que a minha existência era o bastante, fazia-me sentir que eu importava. Gostava de me ouvir, de me ver e de estar comigo. Quando não podia corresponder a um pedido meu, um desejo, dizia-me com gentileza e aquele olhar dócil e tão dela, que não podia ser e porquê. Pedia desculpa, dizia por favor e obrigada. Tratava-me como qualquer criança deve ser tratada, com respeito. Sem necessidade de mentiras, manipulação, quadros de honra, bolinhas ou de comportamentos, recompensas ou subornos. Sem apelar ao medo, à submissão, mas antes ao igual valor. E eu sabia, sim, que ela era uma autoridade na minha vida. E eu sabia que ela era a avó e eu a neta. E sabia principalmente que tínhamos ambas valor, direitos e deveres na nossa família e na nossa comunidade.

Dizia-me muitas vezes que não tinha sido a mãe que gostaria de ter sido, que tinham sido tempos, mesmo, muito difíceis e duros, que recordava bem, mas que agora era diferente.

A minha avó como tantos outros exemplos, de tantas mulheres e mães da sua geração, e tantas outras gerações, podia ter escolhido perpetuar um ciclo de autoridade, de foco na obediência, de controlo, de “amor-forçado”, de “eu é que mando e tem de ser assim, porque sim”, mas ela escolheu amadurecer. Escolheu refletir. Escolheu questionar-se e acima de tudo, escolheu ser uma avó diferente da mãe que tinha sido. Escolheu, acredito eu, ouvir o seu coração e intuição. E eu estou-lhe eternamente grata pela coragem que ela teve em o fazer, porque com isso mudou e influenciou o meu mundo interno para sempre e, acredito eu, o de muita gente que teve o privilégio de a conhecer.

A minha avó era uma pessoa com um coração gigante, onde cabiam todos, da família ou não. A sua generosidade e fé (em Deus e na humanidade), a forma como me tratava e tratava os outros, marcou para sempre as minhas memórias de criança e agora de adulta. O carinho, o aconchego, os mimos, a segurança e a liberdade que sentia em cada momento que privava com ela ficaram gravados no meu ser. Cada pão e broa amassados por nós. Cada refeição feita em conjunto. Cada tarde passada na terra entre a enxada, um abraço e um – “Inês, vou-te mostrar como estão bonitas as ervilhas, as couves!”. Tanto amor, dedicação e presença em tudo o que fazia. A sua serenidade quando eu estava doente e ela cuidava de mim. Consigo, ainda agora, sentir o sabor e o cheiro da broa acabada de sair do forno, do chá de limão, do arroz doce e do bolo mármore. Estas memórias são sementes. Sementes que foram plantadas, cuidadas, regadas, nutridas. Que nasceram, cresceram e crescem, e se espalham para dar origem a tantas outras novas formas de vida e realizações.

Não havia pessoa que eu mais amasse, respeitasse, admirasse, que a minha avó. A sua companhia era uma luz, um conforto e um porto seguro na minha infância, adolescência e idade adulta. Ainda hoje a sinto, a ouço, a vejo em tantas e tão maravilhosas memórias que guardo. A doçura dos seus olhos, das suas palavras, da sua companhia em tantos dias da minha vida. Memórias que me dão força, alento, coragem e determinação para seguir o meu coração e questionar os padrões que, também eu quero mudar, enquanto mulher, mãe e cidadã.

Ela não era de todo uma mulher perfeita, não, era uma avó real, que escolheu o caminho da honestidade, da humildade e da humanidade e isso sentia-se em tudo o que dizia e fazia.

Por isto tudo e muito, muito mais. Quando me dizem que a Parentalidade Consciente, a educação com base no respeito, nos afetos, que tem em conta as necessidades da criança, jovem ou adulto, que tem em conta a importância do seu ser e sua individualidade, as suas emoções (muito mais do que apenas o comportamento), são modas. Que são para quem não quer saber e não quer educar. Eu me pergunto e te convido a perguntares-te:

Será mesmo? Será que o amor, o afeto, o respeito por nós mesmos e pelo outro. A dignidade e integridade. O igual valor. O direito a existir como pessoa, independentemente da idade, género, nacionalidade, cor, religião. A liberdade e oportunidade de se ter uma voz, de poder comunicar os próprios limites, de dar, ou não, consentimento. O direito a sentir segurança. O direito à privacidade. Questiono-me. Serão, mesmo, sinais de educação “permissiva” e assim tão modernos?

Sinceramente, e do fundo do meu coração, eu sei que é possível o caminho da parentalidade e  da educação consciente. Não digo fácil, rápido. Digo possível e muito gratificante. E estou tão segura de vos dizer que é mesmo possível porque, como em cima vos contei, tenho gravado no meu ser a luz da minha avó e a forma como ela pacientemente me ajudou, e ajuda através de tantas memórias, a aceder à minha própria luz.

A minha intenção com este texto de partilha de memórias tão pessoais é convidar mais pessoas a acederem à sua história de vida, desde o início, lá na infância. Que possam sentir a escolha de se celebrarem e celebrarem o seu passado, o seu presente. Nos momentos bons e prazerosos e, também, nos mais difíceis e dolorosos. Que possam relembrar as pessoas que as inspiraram, inspiram e ajudam a crescer, pelo exemplo. Que possam revisitar memórias de eventos da sua vida que de alguma forma possam estar a influenciar, condicionar, as escolhas e comportamentos atuais. Que possam atribuir, talvez, um novo significado às memórias mais duras e expandir as memórias que transmitem alento, que enobrecem, que fazem sentir bem. Que possam sentir liberdade em se questionarem, em se colocarem em causa. Por exemplo, relativamente à forma como foram educadas, as estratégias educativas que foram usadas pelos seus cuidadores. Que se permitam colocar questões como: O que sentia eu na altura. Medo ou respeito/admiração? Que impacto tiveram, têm na minha vida, ainda agora, essas estratégias usadas, outrora? E na vida das crianças com quem interajo? – Sabendo, e partindo do princípio, que os adultos na altura faziam o melhor que podiam e sabiam com os recursos que tinham disponíveis, tal como, agora, eu e tu fazemos.

Aos adultos que escolhem a coragem de serem luz. Que se permitem mudar, crescer, amadurecer. OBRIGADA, obrigada por estarem a contribuir, tanto, para uma sociedade com mais humanidade.

Um abraço de coração a coração.