Mais importante do que a Vacina?
Se a vacina cuida da saúde do corpo, o que aconteceu cuida do quê?
Um dos meus filhos faz, há cerca de um ano, mensalmente, um tratamento com uma vacina.
Em Abril, devido à pandemia, o serviço do hospital onde vamos para que ele a receba suspendeu a vacinação. Para que não perdesse o efeito e prejudicasse o plano do tratamento, a médica que o segue disponibilizou-se para lhe administrar a vacina, ela própria, no seu consultório particular. Não cobrou nada por isso.
A tensão e cuidado para evitar um eventual contágio com covid-19 eram evidentes e até um pouco constrangedores, mas senti-me muito grata à pneumologista pela atenção para com o meu filho e todo o investimento que temos feito neste tratamento.
Em Maio, o serviço hospitalar voltou a marcar a vacinação, pelo que desta vez foi a enfermeira do serviço que a aplicou, depois do meu filho ser visto pela sua médica. Correu tudo normalmente e, exactamente como nas dez vezes anteriores, a enfermeira relembrou o protocolo de segurança desta vacina, que implica aguardar um período de tempo na sala de espera, voltar para observação/avaliação e, só depois, podermos ir embora. No entanto, no mês anterior, na clínica, o protocolo tinha sido ligeiramente diferente. O meu filho reparou e perguntou-me:
«Porque não podemos fazer como fizemos no consultório da doutora?»
«Não sei filho. Mas aqui é assim. Sempre foi. Não vale a pena questionar.»
«Porque não? Pelos vistos também pode ser de outra maneira. Na clínica fizemos de outra maneira. Vamos perguntar.»
Comecei a ficar inquieta. Dentro da minha cabeça começou a correr um filme (antigo) de que «não se questiona a autoridade», de que «quem é o médico aqui?», «se a srª é que sabe, faça o que quiser, o filho é seu, não tenho nada que ver com isso…»…
Ele insistiu:
«Mãe, vamos perguntar.»
A inquietação manteve-se e a consciência do filme fez-me perceber que a minha resistência a perguntar e conversar com a enfermeira e a médica estava relacionada com o medo: medo que se repetissem cenários já vividos, medo que interpretassem mal as nossas intenções, medo que se criasse animosidade, medo que dissessem ao meu filho o que me diziam a mim em criança e medo de como eu reagiria caso acontecesse.
Eu achava que a pergunta era legítima. Sabia que vai fazer este tratamento durante 3 a 5 anos, que conhecer e perceber o que se está a passar com ele, com a sua saúde, com o seu corpo, com o seu tempo… é importante.
A pergunta fazia-me sentido. A minha inquietação também. Mas a minha contenção não era a resposta congruente com a atitude proactiva do meu filho, com a promoção da sua voz e o respeito pela sua integridade pessoal.
A minha contenção era a resposta confortável ao meu medo, mas muito desconfortável para a relação que quero ter com o meu filho e que ele tenha com os outros.
Dei uns passos em frente, sentindo a sua mão na minha. Olhou-me com um sorrisito e um encolher de ombros “tipo” «bora lá!». Comprimidos nas ombreiras da porta, para manter a distância social, expliquei à srª enfermeira as nossas dúvidas sobre o protocolo, como o procedimento havia sido diferente e se poderíamos fazer da forma que o meu filho preferia.
Por detrás da máscara, vi uns olhos a sorrir. Virando-se para ele:
«É isso mesmo meu querido. Estás atento ao que se passa contigo, notas as diferenças e questionas. É assim mesmo.»
Pasmei. Felizmente, tinha a máscara posta para não me verem de boca aberta…
«Quem te pode responder a isso é a doutora.»
Ainda de boca aberta, vi surgir imediatamente a pneumologista:
«Oh querido, ouvi a vossa conversa. Eu percebo que preferisses como fizemos lá na clínica mas……..»
Explicou a situação.
O meu filho assentiu com a cabeça. Voltou a encolher os ombros e disse «ok». (Enquanto eu mantinha a boca aberta, felizmente por detrás da máscara.)
«Ainda bem que compreendes e ainda bem que perguntaste.»
Voltámos para a sala de espera e cumprimos o protocolo hospitalar.
Mais importante do que uma vacina, o meu filho recebeu destas duas profissionais o respeito pela sua integridade e a validação da sua responsabilidade pessoal.
E eu, não tendo sido vacinada, recebi uma injecção de esperança na interacção consciente e de igual valor entre adultos e crianças.
Por Mafalda Correia