Sabes, tenho medo
“Sabes, tenho medo. Eu nunca consigo ter boas notas e a minha mãe fica triste, não gosta de mim assim. O meu pai zanga-se comigo. Eu nunca vou conseguir ser bom nas coisas.” – Disse-me O S. a chorar e com as mãos a cobrir-lhe o rosto.
O S. é uma criança de 7 anos. Frequenta o 2º ano do 1ºCiclo e gosta mais ou menos da escola. Gosta especialmente do recreio, quando estão lá os seus amigos especiais, que são dois e quando brincam todos sem se magoar. Estes amigos, contou-me o S. são mesmo especiais porque não batem e gostam das mesmas brincadeiras que ele.
Não gosta assim tanto da escola quando faz fichas, testes e se sente avaliado. Não gosta quando a professora lhe diz que é preguiçoso e lento, ou que tem capacidade para fazer mais. Não gosta quando tem de fazer ditados e se distrai, porque não consegue acompanhar. Não gosta quando sente que não consegue e que nunca vai conseguir.
O S. é meigo, sincero, criativo, sensível ao que ouve, vê, sente e imagina, sobre si e sobre os outros. É uma criança empática que, por vezes, fica assoberbado com tantas emoções que, nem sempre, compreende, sobre si e sobre os outros.
Desenha e escreve de forma espetacular com os seus 7 anos, no entanto nunca está bem aos seus olhos. Demora imenso tempo a decidir o que vai fazer, ou escrever. Não porque não saiba o que quer fazer, mas porque tem medo de falhar. Tem medo de desapontar o adulto, seja a professora, sejam os pais. Sente uma insegurança avassaladora que, tantas vezes, o deixa sem chão e despoleta crises de ansiedade, que se manifestam em crises de choro compulsivo, tremores, aceleração dos batimentos cardíacos e respiração ofegante.
Agora que o 1º período de aulas está a chegar ao fim. As olheiras aumentaram e as crises de insegurança, também. Quando o S. se acalma, respira, relaxa e está presente. Costumo perguntar-lhe, olhos nos olhos, o que, na opinião dele, lhe causa tanta preocupação, tanto medo.
Responde-me sempre o mesmo. O medo de não conseguir. O medo dos pais não gostarem dele. O medo dos amigos não gostarem dele. O medo da professora e os pais se zangarem e falarem alto ou o castigarem. – “Sabes, tenho medo. Eu nunca consigo ter boas notas e a minha mãe fica triste, não gosta de mim assim. O meu pai zanga-se comigo. Eu nunca vou conseguir ser bom nas coisas.”
Quando estas situações acontecem, costumo também fazer-lhe perguntas como:
“ O que é ser bom/mau?”
“O que é fazer bem/mal?”
“ O que sentes quando vês os teus trabalhos?”
“O que sentes, ou como te sentes quando estás a fazer os teus trabalhos?”
“ O que é importante para ti? O que gostas mais em ti?
“O que acontece se os outros não gostarem do teu trabalho?”
“ O que te leva a crer que a tua mãe/pai/amigos/professora, não gostam de ti?”
“O que podes fazer quando sentes medo de não conseguir?”
Estas e outras perguntas têm a principal intenção de incentivar o S. a considerar outros cenários. Permitindo-lhe falar e ganhar mais consciência do que sente, como sente. Identificar e nomear as emoções. Conhecer-se melhor. Valorizar os seus pontos fortes e os menos fortes. Lembrá-lo que tem escolhas e que as emoções fortes são seguras e como aparecem também desaparecem, assim como as nuvens, a chuva, o sol, o vento.
Não nos podemos, nem devemos esquecer que o S. está numa fase super importante de desenvolvimento cerebral, cognitivo, emocional e motor. O pensamento lógico começa a acontecer com mais frequência, a organização e encadeamento mental de acontecimentos também. E a chamada causa-efeito dos acontecimentos, planeamento e tomada de decisão poderão estar mais vezes presente nas suas escolhas. No entanto, devido à imaturidade normal do seu cérebro, as suas perceções ainda estão muito ligadas aos adultos que o rodeiam e muito auto centradas. Ou seja, a forma como se vê a sim mesmo, como “constrói” o seu mundo interno, inclusive a nível de regulação emocional está ainda muito ligado às reações que observa da parte dos seus adultos de referência, normalmente pais, familiares e professores.
Essas reações poderão ser, na sua perceção, positivas ou negativas, boas ou más. Sendo que a sua construção mental, a sua auto imagem, o seu auto valor e auto estima poderão estar muito assentes, ou exclusivamente, no que os outros lhe dizem sobre ele, nas suas expectativas e como ele interpreta essa informação vinda do exterior. Está numa fase em que se começa a desconectar de si mesmo, do que sente como verdadeiro, do que acredita ser importante – para conseguir agradar, para encaixar e pertencer ao mundo em que acha que os adultos o vão aceitar melhor.
Pergunto-me então (muitas vezes):
Será que as avaliações como são feitas atualmente pela maioria das escolas, são assim tão importantes? Para quem? Para quê?
Será que são assim tão importantes ou significativas ao ponto de colocar a saúde mental, o bem-estar físico e emocional dos alunos e dos professores em causa? Que custos pessoais terão, agora e no amanhã?
Será que em todo este processo exigente de reuniões, atribuição de notas quantitativas e qualitativas, paramos, nós professores e pais, um pouco, para nos avaliarmos também?
Será que podemos falar com as crianças sobre como eles se sentem, se vêm, quando são avaliados?
Será que podemos de uma vez por todas aceitar ou considerar que somos seres emocionais, todos nós, que as emoções nos ajudam a crescer mais fortes, resilientes e felizes. Que para isso acontecer precisamos de criar ambientes e condições em que as crianças se sintam seguras para poderem manifestar as suas emoções, especialmente, as que sentem de forma mais intensa. Que precisamos de estar, ouvir, ver e acolher a criança no seu todo, na sua maravilha e encantamento, mas também nas suas dificuldades enquanto seres humanos, como eu e tu. E ajudá-las a compreender o que estão a sentir, porquê e o que podem fazer com essas emoções de forma positiva e construtiva.
Será que podemos considerar que todas as metas curriculares, testes, exames e compromissos podem ser importantes, mas que nada nem ninguém nos vai poder devolver a oportunidade de voltar atrás e mudar os momentos em que escolhemos não estar, abandonar e não assumir a nossa responsabilidade pessoal na infância destas crianças, por um suposto futuro.
Será que podemos valorizar mais a infância e as crianças? Conceber que durante a infância acontecem fases de vida e de desenvolvimento extremamente importantes, únicas e irrepetíveis?
Será que podemos colocar em causa o tempo usado em folhas de excel, reuniões de avaliação, conselhos de turma, direção de turma, e não no acompanhamento, cuidado, conhecimento, relação com as crianças? Quanto tempo será necessário para “remendar” tantos corações, mentes e auto estima destroçados?
Que neste Natal possamos aceitar um convite para uma reflexão profunda e honesta sobre os EDUCADORES que SOMOS e os que queremos, verdadeiramente, Ser.
Que possamos dar o melhor e mais transformador presente que alguma criança ou jovem pode realmente receber – A NOSSA PRESENÇA AUTÊNTICA E PLENA.