Os silêncios da verdade

Chega de mansinho, quase sempre sem avisar. Entra na nossa casa sem pedir licença e se estivermos desprevenidos pode mesmo tomar controlo da nossa vida.

Manifesta-se de diferentes formas no nosso corpo: respiração ofegante e quebrada, fadiga e sono agitado e perturbador, dores esquelético-musculares, aumento ou perda de apetite, apatia generalizada, ritmo cardíaco instável, mãos humedecidas e dedos frios, tremores, tonturas ou visão turva… Um sem número de manifestações físicas que muitas vezes insistimos em ignorar porque não são “visíveis”.

Quando descuramos todos estes sinais, ele acaba mesmo por juntar imensos outros ao rol inicial, transformando a sua entrada um grande alarido para encontrar forma de ser visto.

E a nós, se queremos que ele vá embora, só nos resta aceitar que ele veio e está ali a cumprimentar. Enfrentá-lo olhos nos olhos, cumprimentá-lo de volta e convidá-lo a entrar poderá mesmo ser a melhor estratégia para evitar que ele invada a nossa casa e a nossa vida para sempre.

Se conseguirmos fazer isso vamos perceber que ele vem, fica um pouco e depois vai embora. O truque para que ele não se torne persona non grata é mesmo ousar enfrentá-lo e dizer algo do género: “Ah, olá! És tu outra vez!”.

É que ele precisa muito de ser visto para se sentir importante e se nós não o negligenciarmos, ele acaba mesmo por sair da nossa casa como alguém que nos foi dar um recado rápido e não como um convidado indesejável e persistente que insiste em ficar e privar connosco.
O poder de escolha está nas nossas mãos: tê-lo como elemento protetor ou elemento perturbador é mesmo uma decisão nossa.
Talvez seja uma das emoções mais desafiantes e perturbadoras de sentirmos, precisamente por essa dificuldade em aceitarmos a sua chegada.

Mas porque será que temos essa dificuldade em recebê-la de sorriso rasgado como a qualquer outro convidado nosso? Quem é que nos disse afinal que ele não vinha por bem?

Talvez por termos crescido a ouvir de toda a gente à nossa volta que a sua chegada significava algo mau. Algo que devia ser escondido, desvalorizado, rejeitado até. Ao longo de décadas e décadas ela nunca foi bem-vinda – e de mãos dadas com as suas amigas Tristeza, Culpa ou Vergonha acabou por adquirir o rótulo de “feia” e por sofrer um estigma tão grande e uma marginalização que nos faz sentir a nós mal e inferiores cada vez que nos decide escolher a nós para visitar.

O Medo não é visto nem aceite na nossa sociedade como uma emoção natural e segura de sentir. Desde pequeninos nos dizem que é disparate sentir Medo. E é também desde pequeninos que vemos os adultos a usá-lo sem qualquer pudor como arma de arremesso quando pretendem virar o jogo a seu favor: “Não vás para aí que vem o lobo mau e come-te! Olha o bicho-papão que te leva se fizeres isso! Se continuas a fazer isso, já sabes que ficas de castigo!” Quando não sabemos ou não conseguimos comunicar de um modo mais consciente e alinhado com os nossos verdadeiros valores, usamos cobardemente o Medo como recurso para levar o outro a fazer o que pretendemos e – se for criança, ainda mais frequentemente – para nos sobrepormos numa relação de poder onde precisamos sentir-nos superiores de algum modo.

Curiosamente e antagonicamente, é por nos sentirmos mais insignificantes, mais frágeis ou inseguros que recorremos ao Medo como nosso aliado para derrubar o outro e nos sentirmos vitoriosos. Pregamos tantas vezes o discurso do respeito como se Medo e respeito fossem sinónimos. Por exemplo, quando nos referimos ao respeito que as crianças devem pelos adultos, focando-nos numa óptica de obediência.
Medo não é, não foi e nunca será igual a respeito.

O Medo não me aproxima do outro, afasta-me e afasta qualquer comunicação baseada no respeito, na empatia e na tolerância.
Se eu quero ser respeitado, eu devo primeiro respeitar o outro e a pessoa que ele é e isso significa dar-lhe espaço desde pequenino para se conhecer, se dar a conhecer e para eu o conhecer, consequentemente. Quantas vezes nos referimos ao facto de os nossos filhos serem bem-comportados porque não nos respondem de volta mesmo que estejamos a dizer o maior dos disparates? Educados, porque calam o que não vale a pena discutir ou porque felizmente conseguem tantas vezes ser mais conscientes do que nós e sentir que o caminho não é por ali?

Quantas e quantas vezes descarregamos frustrações em cima deles e os acusamos de coisas das quais não têm culpa nenhuma? Como quando querem trocar de calças ao sairmos de casa já atrasados, porque perceberam que aquelas que nós escolhemos para eles vestirem não são as mais adequadas para aquele dia e temem sentir-se desconfortáveis por longas horas? E aí usamos a oportunidade para descarregarmos em cima deles tudo o que fazemos por eles e o quão mal agradecidos são porque: não percebem o dinheiro que gastamos na compra das suas roupas, o tempo que perdemos com idas a lojas para escolher coisas para eles, o facto de aparentemente desvalorizarem o acto de separarmos a roupa que escolhemos para vestirem, a atenção que estamos a ter em relação aos atrasos ao chegar à escola no caso de decidirem efectivamente trocar uma simples peça de vestuário…

E a lista poderia mesmo ser interminável, não é? Além de não lhes estarmos a ensinar nada sobre responsabilidade pessoal ou autonomia – ao deixá-los ser responsáveis por escolhas que podiam perfeitamente ser deles – também lhes atribuímos ainda a nossa culpa disfarçada que decidimos carregar às costas como uma cruz tantas e tantas vezes!

É este um dos retratos das manhãs das casas de muitos de nós. E neste bate-boca sem sentido são na maior parte das vezes as crianças que têm o bom senso de se calar e desistir. E é isso que lhes ensinamos.

A desistir. Não por respeito. E sim por medo.
Medo de mais discussão.
Medo de mais gritos.
Medo de mais desconexão.
Medo de nos magoarem.
Medo que deixem de ser amados.
É só por isso que as crianças se calam. Porque conseguem perceber que há lutas que não valem a pena travar e braços de ferro que não fazem sentido.
Sentir medo é o oposto de sentir coragem.
E quando eles têm o seu momento “Uau!”e percebem que afinal quem tem mais medo somos nós, a última coisa que querem é ver-nos como cobardes, mesmo que em silêncio.
E há silêncios mais duros do que muitas discussões.
Os silêncios da verdade.

E não será afinal disso que todos temos medo: de que os nossos silêncios tragam com eles a descoberta da nossa verdade?

Por Augusta Dantas