As nossas sementes interiores

de Diana Pereira

A M. tem 2 anos, costuma passar o dia na casa da avó e é muito habitual ouvi-la a chorar ou a gritar. A avó está sempre a mandá-la calar e a dizer que é feia.

O J. tem 5 anos e a mãe deixa-o todos os dias de manhã na casa da avó dele e todos os dias a mãe do J. grita com ele, diz-lhe que é desobediente, preguiçoso e teimoso. O J. leva, muitas vezes, estaladas, puxões de orelhas ou sapatadas no rabo e quase todos os dias ele fica a chorar enquanto a mãe e a avó gritam com ele e dizem que só se porta mal, que ele não manda e que tem de obedecer. Ás vezes o J. leva um estalo porque abriu a porta da rua e ninguém o mandou.

O S. tem 6 anos, vive com a mãe e o irmão mais novo. A mãe do S. grita muito com ele, diz-lhe para ter cuidado com o irmão e para dar o exemplo. Ás vezes também lhe diz que é irritante e para estar quieto.

Estas são histórias reais e algumas das suas dinâmicas familiares, possivelmente estas dinâmicas repetem-se em muitas outras famílias, mas quando observamos estas realidades pelas lentes da compaixão conseguimos perceber muitas carências que nós adultos e educadores temos e que estão por trás destes comportamentos desvinculadores e condicionais.

Acredito que enquanto seres humanos nascemos intrinsecamente bondosos, basta observar como uma criança pequena interage com o mundo e com as pessoas à sua volta para perceber a facilidade e espontaneidade dos sorrisos, nas demonstrações de amor autênticas, na partilha enquanto brincam ou comem sem fazerem juízos de valor ou interesse premeditado sobre as pessoas e o mundo que as rodeia.

Ao longo do tempo vão sendo semeadas dentro de nós as sementes que vamos levar para a nossa vida. Chamo-lhe sementes a todos os comportamentos, linguagem verbal e paraverbal e mensagens que passamos às nossas crianças de forma explícita e implícita e que são demonstradas através da forma como nos relacionamos connosco, com as pessoas e com o mundo. Quando nos irritamos, frustramos, quando somos intolerantes ou impacientes significa que essas sementes foram semeadas dentro de nós, caso contrário elas não se manifestavam e em vez dessas poderiam estar muitas outras sementes de amor, curiosidade, criatividade, paciência, resiliência e tolerância.

 

A avó da M., a mãe do J. e a mãe do S. são exemplos de mulheres, possivelmente cansadas pois não é comum ver-se a figura masculina envolvida, e que construíram uma série de barreiras à sua volta ao longo da vida para se proteger de olhares, críticas e opiniões alheias que elas não pediram e que vão camuflando de forma muito subtil a sua voz interior. Para estas pessoas a linguagem deixou de ser há muito uma forma de comunicação para serem armas de arremesso e esta comunicação violenta mostra-nos que existe uma projecção invisível das nossas emoções, pois a verdadeira guerra está a existir no nosso interior.

Estas barreiras invisíveis servem para camuflar todas as dores e mágoas que sobrevivem no seu íntimo e só serão quebradas através do amor, assim como todas as barreiras físicas e emocionais e este amor começa pelo amor próprio, pela amabilidade com que nos cuidamos diariamente e pela forma como nos sentamos com a nossa história e a compreendemos sem julgamentos ou culpas e fazemos tréguas para apaziguar o nosso ser interior.

Reflectir sobre o nosso íntimo pode ser doloroso, pensar em momentos da infância pode trazer sentimentos arrebatadores, mas se dói é porque ainda há feridas para cicatrizar e temos nesse momento uma bela oportunidade para reflectir e olhar ainda mais fundo para que possamos viver em plenitude.

Podemos todos a qualquer momento começar a cultivar novas sementes prósperas no nosso interior e é através do nosso auto-cuidado que vamos cuidar melhor de quem mais amamos e fazer deste mundo um lugar melhor.