A Preguiça e as outras partes
de Maria José Pita
Se tirarmos a cor do cabelo e o próprio cabelo, a cor da pele, a estatura, os olhos, o nariz, o corpo, o tom de voz, a forma como nos relacionamos com os outros, as nossas preferências, o que sobra?
Por baixo de tudo o que é visível, o que existe que nos caracteriza de forma única e que determina a nossa pegada de humanidade?
Às vezes, os adolescentes dizem-me:
“eu sou preguiçoso”; “eu sou desatento”; “eu sou distraído”; “eu sou desinteressante”; “eu sou chato”; “eu sou desinteressado”…
E eu, olho para eles, para o fundo dos seus olhos, e apenas vejo magia presa, à espera para se escapar e espalhar.
Acredito que cada um de nós é composto por várias partes. Como se fosse uma assembleia de partes. Todas, sem excepção, têm assento na nossa Assembleia.
Existem, no exterior, os Conselheiros, que na nossa infância são os nossos pais ou as pessoas em quem confiamos, que vão dando pistas sobre as partes que precisamos treinar mais, em cada momento, para que cada um de nós esteja à altura dos seus desafios.
Por vezes, a parte do medo está muito grande, os pais dizem-nos: “Vá, tu és capaz! Salta! Tu consegues!” Como confiamos neles, e porque as partes estão sempre muito atentas, a parte da coragem, em conjunto com a dos saltos e mais umas quantas que fazem falta para dar grandes saltos, juntam-se e, pumbas, sai um grande salto.
Mas, se as crianças têm a sua parte da preguiça muito grande… os pais, para os ajudarem, dizem-lhes: “Apetece-te descansar um pouquinho? Se calhar depois de descansares e tomares um lanchinho já tens energia para estudar, ou para arrumar o quarto, o que te parece?” Desta forma, os pais ajudam as crianças a identificarem as partes que precisam convocar para fazer o que é preciso fazer: o descanso, a energia, a parte que sabe estudar, a que sabe apreender, a que sabe arrumar o quarto, e por aí fora…
Outras vezes, os pais estão tão cansados, com tanta falta de tempo, tão preocupados com a sua vida, que, na sua ânsia de terem resultados rápidos ou de lidarem com uma situação para a qual não estão preparados, em vez de darem pistas sobre as partes a convocar para ensinar os filhos a terem um conjunto de cooperadores dentro de si, dizem, de forma desajeitada, porque é esse o melhor que nesse momento são capazes de fazer:
-És um preguiçoso…
-És um desatento…
-És um distraído, um cabeça no ar…
Às vezes o que acontece a seguir é o contrário do que os pais querem… Os pais queriam que, por chamarem preguiçoso à criança, ela percebesse que o desejável seria o contrário, sem darem pistas de como se faz.
Muitas vezes, os pais não sabem mesmo como se faz não preguiçar, ou como se produz atenção… O que acontece então, quando os pais dizem à criança: “És um preguiçoso!”, por exemplo, é que a parte da preguiça ouve os Conselheiros dizerem “És um preguiçoso!”, fica toda contente, e pensa, se calhar eu sou a parte mais importante, se calhar sou eu a chefe desta assembleia e vai ganhando cada vez mais força… Como poderia ser diferente, se as pessoas em quem as partes confiam, os pais, é que estão a dar esta informação? A informação de que a criança é principalmente a parte da preguiça, ou da desatenção, ou da distração…
Como podem os pais ajudar as crianças? Fácil! Em primeiro lugar, os pais devem observar as crianças; depois, com os olhos e com o coração, percebem o que se está a passar; e de seguida fazem uma espécie de convocatória das partes que precisam de ser activadas para que todas tenham voz dentro das crianças e para que nenhuma se transforme numa ditadora cujo desafio seja o derrube do regime.
Todas as partes fazem falta e por isso podemos estar gratos por as termos. Procuramos que cada uma tenha a sua voz, no momento adequado, para satisfazer a necessidade que existe em cada momento. Imaginem que não tínhamos a parte da preguiça. Estávamos sempre activos, muito activos. Um dia gastávamos mais energia do que a que tínhamos e caíamos para o lado.
E se não tivéssemos a parte que sabe dizer palavrões? Quando estivéssemos com quem os usa não os perceberíamos e nos momentos em que estamos mesmo, mesmo, mesmo muito zangados não teríamos uma espécie de arma secreta para nos ajudar a lidar com a raiva.
Todas as partes nos ajudam. Quando mais democrática for a nossa Assembleia das partes, mais adequado é o seu trabalho e de melhor forma se organizarão os grupos de trabalho que lá se organizam.
Afinal, de que somos feitos? Somos feitos de partes, que, quando trabalham de forma colaborativa, nos permitem trazer para fora de nós a nossa missão, que ao fim ao cabo é quem nós verdadeiramente somos, se tirarmos a cor do cabelo e o próprio cabelo, a cor da pele, a estatura, os olhos, o nariz, o corpo, o tom de voz, a forma como nos relacionamos com os outros, as nossas preferências…
Um facilitador de parentalidade consciente é alguém que ajuda os pais a conhecerem as suas partes e as dos seus filhos e a, de forma amorosa, ensinar e aprender, aprender e ensinar, como terem Assembleias felizes.